Amiga minha a quem o solicitei expressamente predispôs-se a relatar aqui como viveu alguns dos dias mais agitados durante a "confusão" de 2006.
Alojada então no City Café, trata-se de um relato na primeira pessoa que, de acordo com a autora ("Simplesmente J."), foi ligeiramente "editado".
Aqui fica o nosso agradecimento à autora deste texto. O agradecimento é, simultaneamente, um desafio para que outros(as) partilhem aqui connosco as suas "estórias" passadas em Timor Leste nos últimos 10 anos.
"Vou-me limitar aos acontecimentos pessoais, sem comentar ou narrar os acontecimentos políticos!
As aventuras começaram ainda em Abril [de 2006], aquando da manifestação [ligada à Igreja]junto à actual Casa Europa, a antiga "Intendência" dos últimos tempos da administração portuguesa. O City --- ou bunker como nós gostávamos de lhe chamar por nele nos sentirmos em segurança --- tinha como inquilinos normais, para além de muitos civis "internacionais", muitos polícias e militares, portugueses e não só.
No final de abril, dia 28 se não me engano, eu estava no ME numa reunião, quando recebi um sms da minha irmã a avisar que o Alkatiri ía acabar com a manifestação e que o melhor era ir para casa pois poderia haver confusão.
Sem avisar ninguém para não lançar o pânico, arrumei as minhas coisas e saí "à francesa" --- que os nossos primos brasileiros chamariam de "sair de fininho"...
Não havia nenhum taxi em Vila Verde e decidi ir para casa a pé. Por via das dúvidas, fui pela rua que vai dar ao Obrigado Barraks pois se os problemas começassem naquela altura eu entraria lá para dentro e ficaria em segurança. Indo pelo outro lado arriscava-me a ser apanhada no meio da confusão na rua. Chegando à Tropical Bakery entrei e comprei algo de comer para levar para o City pois não sabia se iria ficar lá fechada algum tempo ou não.
A tensão era imensa. Não sei explicar bem o que se sente nem descrever o ambiente, mas a verdade é que a tensão se sente. Sente-se um peso enorme, um clima estranho. As pessoas comportam-se de forma diferente, os olhares são diferentes. Os nossos músculos contraiem-se sem que nós possamos fazer algo contra isso e sem que nos apercebamos o quão tensos estamos.
Ao sair da Tropical Bakery apareceu um taxi que apanhei de imediato em direcção ao City. Lembro-me de pensar que se ele me levasse para outro lado e me atacasse ninguém saberia de mim e eu não teria como escapar. Afinal eu estava em Timor há apenas 2 meses e ainda não conhecia os recantos todos da cidade. Correu tudo bem e cheguei a casa sã e salva.
Estava no quarto há menos de 5 minutos quando comecei a ouvir gritos de homens. Gritavam coisas como “já começou”, “foi há 1 hora”…. Abri a porta do quarto e percebi que era o S. e o C. [ambos oficiais da Marinha portuguesa] que íam a descer as escadas a correr e a falar um com o outro. Perguntei o que se passava e como resposta o C. gritou-me na sua voz de comando de fuzileiro experiente: “vá para o seu quarto e não saia de lá até eu lhe dizer”. Percebi então que a situação era grave.
Fui bater na porta do quarto da RM, que era virado para o lado do Palácio do Governo. Ela estava lá com a J.. Quando entrei ouviu-se um estrondo, tiros e de repente vimos fumo vindo da zona do Palácio. Não conseguiamos perceber o que se passava, mas atendendo à informação que tinha deu para desconfiar.
Entrei no meu quarto novamente e pensei que se fosse preciso sair dali o melhor era eu estar preparada para correr e fui calçar uns ténis. Quando voltei ao quarto da RM reparei que, sem que tivessemos trocado opiniões, todas tínhamos feito o mesmo e estávamos preparadas para sair dali a correr.
O City estava quase deserto pois era hora do almoço e as pessoas que lá viviam normalmente não estavam nos quartos a essa hora. Vimos um polícia brasileiro a sair e lembro-me de lhe dizer que não se esquecesse de nós caso houvesse algum problema naquela zona! Ficámos apenas as 3 e o LM, um senhor que trabalhava na EDTL. No restaurante apenas estava a dona, D. Fátima, e as empregadas, estas em pânico.
Lá para as 4h da tarde apareceram umas professoras portuguesas a dizer que iam fugir pois tinham recebido indicações de que o City não era seguro --- exactamente por os polícias e militares serem previsível "chamariz" para os desordeiros. Ficámos assustadíssimas, até que apareceu o S. e se pôs aos gritos, furioso com os comentários das professoras! Mandou-nos ficar por lá e não sair à rua. E assim fizemos.
Eu comecei a ficar preocupada com as notícias que iriam chegar a Portugal. Os telemóveis não funcionavam. Lembrei-me que a D. Fátima tinha um fax e utilizei-o para avisar a família do que se estava a passar e que estava bem.
Ao final do dia os outros inquilinos foram chegando e contando as suas peripécias e perspectivas do dia. O ambiente foi acalmando.
No dia seguinte, um sábado, fomos avisados para não andar a vaguear pelas ruas, mas que podiamos deslocar-nos se fosse preciso. Passámos o dia na piscina do hotel Timor, num ambiente divertido. No dia seguinte, um domingo, estava tudo tão tranquilo novamente que fomos para a praia da Areia Branca! O maior stress tinha passado.
Apesar dos carros queimados, dos distúrbios, Dili tinha voltado à normalidade dos últimos dias --- uma normalidade que era tudo menos normal. Desde o início de Abril que a cidade andava tensa e se sentia que podia acontecer algo a qualquer momento.
Em Maio a tensão continuou e aumentou. Foi piorando, com pedradas pela cidade e alguns distúrbios. Por diversas vezes eu recebi sms dos meus chefes a mandar-me ficar em casa por questões de segurança. Isto durava uma manhã, outras vezes um dia. Mais para o final do mês as coisas complicaram-se e fomos forçados a ficar em casa vários dias. Ficámos fechados no City. Os únicos que saiam à rua eram os militares, os polícias e os (poucos) funcionários (portugueses) da EDTL que, conscientes da sua função de assegurar o fornecimento de energia à cidade, correram riscos que outros não correriam. Eram estes nossos "vizinhos" que, ao final de cada dia, nos iam pondo a par dos acontecimentos.
Os telefones raramente funcionavam e por isso na maior parte do tempo nem sequer sabiamos o que acontecia fora do City. Aproveitámos aquela paragem forçada nas nossas actividades profissionais para ver muitos filmes e para visitarmos os quartos todos do hotel. Enfim, fomos tentando passar o tempo da melhor forma possível.
Certa noite estávamos em plena "festa africana", com música e danças africanas para tentar esquecer o que se passava lá fora, quando o C. entra e nos diz que éramos todos loucos pois estávamos a dançar enquanto lá fora matavam polícias. Foi assim que soubemos do que tinha acontecido nesse dia. Percebemos então que, ao contrário das nossas esperanças, a situação não iria melhorar tão breve.
Por essa altura começamos a dividir os quartos para que outras pessoas que tinham sido apanhadas no meio dos distúrbios e não se sentiam em segurança nas suas residências pudessem dormir no City. A J. veio dormir para o meu quarto. Acordava todas as noites pelas 4h da manhã para ver as notícias da RTP Internacional e acordava-me em pânico com o que ouvia. Foram tempos difíceis para todos, mas ela estava mais assustada que a maioria das pessoas.
Os trabalhadores que, pela UCCLA e Câmara de Lisboa, recuperavam o Palácio de Lahane também estavam agora de armas e bagagens no City, sem querer sair de lá pois tinham sido apanhados no meio de um tiroteio e estavam assustados. Queriam ir para Portugal e alguns deles falavam em nunca mais voltar.
Ao mesmo tempo, para algumas pessoas o amor andava no ar!!!! A T. e o PM tinham começado a sua relação há pouco tempo e ela andava nas nuvens, com ou sem tiros no exterior!!! Eram contrastes engraçados no meio de toda aquela confusão!
Passado algum tempo começaram a surgir ordens de evacuação do pessoal civil ligado à ONU --- e não só. Foi o tempo de preparar as mochilas de emergência, que depois se transformaram, pelo menos no meu caso, em malas com tudo o que era possível levar pois naquela altura, de acordo com as informações que ía recebendo dos responsáveis do projecto para o qual trabalhava, tudo indicava que me ia embora de vez. A perspectiva era a de que as coisas iriam piorar em Timor e o projecto não ficaria em standby para sempre.
Fui com os meus colegas R. e J. até ao escritório da Merpati, então já funcionando no supermercado Landmark, a fim de tentarmos obter bilhetes da companhia para sair de Timor via Bali. Este era, naquela época, o único local onde se podia tratar de arranjar bilhetes de avião para sair do país.
Fomos muito tensos até lá, e com razão, pois quando lá chegámos, havia pedrada na estrada. Esperámos um pouco e as pessoas começaram a ir em direcção ao supermercado Leader, mais adiante em direcção a Comoro. Nessa ocasião nós aproveitámos e entrámos no Landmark.
Nesse momento ouviamos tiros e percebemos que o Leader era o alvo das pedras. Os portões estavam fechados e só eram abertos apenas o necessário para, quando as coisas acalmavam do lado de fora, passar um carro.
Lá conseguimos comprar os bilhetes todos que precisávamos e fomos para o Banco Mundial entregar alguns desses bilhetes para um assessor que lá estava com a família. Assim que lá entrámos percebemos que não poderíamos sair.
Recebemos um sms a avisar que havia disturbios na rua do City Café e começámos a ouvir tiros, granadas, gritos… eram umas 11h da manhã. A minha colega J. ligou-se à internet e começou a avisar os amigos australianos do que se passava e a pedir para mandarem alguém buscá-la!!! A confusão, as explosões e os tiros duraram bastante tempo e só conseguimos sair do banco mundial lá para as 4h da tarde. Nunca senti que tivesse a minha vida em perigo, pois na realidade nunca arrisquei muito. Mas senti que se me aventurasse podia sair magoada. O clima era bem pesado.
No City o comandante C., fuzileiro experiente, tinha tudo controlado! Sabia exactamente quantos carros havia, quem os tinha, para onde iriam caso houvesse problemas maiores. Tinha os números de telefone de todos os habitantes do City e sabia onde estavam caso fosse preciso contactá-los ou ir buscá-los. O Sr. Costa e a D. Fátima também já tinham o jeep pronto para sair, com o porta bagagens cheio, preparados para uma evacuação que se afigurava cada vez mais eminente mas não chegoui a ser necessária
Depois de eu ter deixado Timor, mesmo no final de Maio/2006, os que ficaram no "hotel-bunker" foram organizados pelo "grande comandante" para fazer turnos na varanda do quarto da TL. O quarto dela tornou-se a "sala de operações" ou o "CIC-Centro de Informações de Combate" :-) do hotel! Como era no 2º andar e virado para a rua (Presidente Nicolau Lobato) foram lá colocados na varanda um extintor e os sapatos dela que eram quase todos de "cunha" e por isso seriam, em caso de extrema necessidade, boas armas de arremesso! E assim, de sapatos de senhora prontos a serem "disparados", os "sobreviventes" no City Café preparam-se para a "guerra" se ela lhes batesse à porta! :-)
Segundo me contaram, os homens fizeram. durante algumas noites, turnos de vigilância de cerca de 2 horas. A ideia era estar preparados caso alguém tentasse incendiar o City atirando algo lá para dentro. Apesar de todo este aparato e da tensão existente, a boa disposição foi algo que nunca faltou entre os "sitiados" do City Café. Tirando a J., que não conseguia descontrair, todos brincavam com a situação como forma de melhor a superar.
Foram momentos que ficarão para sempre na memória e, por estranho que pareça, lembro-os com algum saudosismo pois o ambiente que se viveu no City nessa altura entre todos os residentes era bom! "
sábado, 24 de abril de 2010
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