Seja qual for a resposta o certo é que no feriado passado --- que aqui foi na "quarta-feira de cinzas" --- meti o nariz no ar, prescrutei as montanhas em torno de Dili, constatei que havia poucas nuvens e decidi: "é hoje! É hoje que vou subir a montanha e ver como está o vale de Seloi Kraik nesta época de sementeira de arroz!"
A minha esperança era de que esta estivesse em curso, tal como lá para os lados de Baucau, Seiçal e Laga, e proporcionasse fotos bonitas, com o pessoal trabalhando nos campos e a água reflectindo o azul do céu! (além de marinheiro, caixeiro viajante ou almocreve devo ter sido poeta... :-) )
"Se bem o pensei melhor o fiz" e passado poucos minutos estava a começar a subir a ladeira para Lahane, às portas de Dili.
É nessal altura que vejo na borda da estrada um senhor que ao ver-me sózinho no carro me olha com os olhos de quem diz "dá-me boleia?". Por princípio não gosto de dar boleia porque se houver um azar fico metido numa alhada pois não há seguros... Mas não sei porquê --- terá sido o sorriso suave do senhor? Terá sido o ar cinquentão e calmo dele? --- parei e baixei o vidro do lado do passageiro. Ele perguntou imediatamente num português correcto para onde eu ía e respondi-lhe "Aileu! ou melhor Seloi Kraik!". A resposta, de todo inesperada, veio logo de seguida: "Eu sou o chefe de suco de Seloi Kraik! Pode dar-me boleia até lá?!...". A minha resposta também foi (quase) imediata --- foi só o nanosegundo necessário para pensar que tinha companhia falante de portuuês e um cicerone da primeira água: "Está bem! Entre!"
Entrou, acomodou-se, e identificou-se: "O meu nome é José Domingos Pica!" Achei piada ao nome e pensei logo que, com um nome daqueles, tinha andado por ali mãozinha de alentejano... O famoso Dr. Pica, o dux veteranorum mais famoso de Coimbra, não era de lá?!...
E conversando, lá fomos andando até que vimos duas motos paradas na beira da estrada e numa delas uma senhora na "garupa" com um bébe ao colo. Ele pediu para parar pois... era a mulher! Parámos e senti-me na obrigação de dizer se ela queria vir no carro. Convite aceite, seguimos viajem converando e maldizendo, aqui e ali, quem deixava as estradas chegarem a tal estado durante anos e anos... ;-)
Agora com mais passageiros, não dava para me distrair muito com a paisagem e tirar umas fotos... Mas lá fomos andando até chegarmos ao alto da montanha que rodeia Dili, quando se deixa de ver a cidade cá em baixo e se passa a ver o extenso vale onde está Aileu e que é "coroado" pela presença, ao longe, do Tatamailau, o ponto mais lato de Timor Leste, quase sempre coberto por nuvens.
Chegados cerca do Km 36 desviámos para a direita para apanhar a estrada que dá acesso ao vale de Seloi Kraik e que segue para Gleno. Passados uns 3-4 kms o vale abre-se à nossa frente quase por inteiro depois de mais uma das curvas da estrada --- desde Dili até ali devemos ter feito... perto de 1000! Não há zeros a mais, não!
Um pouco mais adiante está o meu "posto de observação" preferido e que tenho fotografado ao longo dos anos uma e outra vez: junto a uma árvore que surge fora da estrada, um pouco abaixo desta.
O vale surge aqui em todo o seu esplendor e extensão, com os arrozais em primeiro plano, a lagoa em segundo e, ao fundo, "presidindo", o Tatamailau --- encoberto, mais uma vez, pelas nuvens!
Primeira constatação: a sementeira já estava completa e não havia ninguém a plantar o arroz nem quadrados cheios de água esperando a sementeira e reflectindo o azul do céu... Paciência! Mas estava a meus pés aquela belezura toda, de um verde verde como só os arrozais conseguem ser!
Mais adiante saímos da estrada Aileu-Gleno e tomamos o desvio (para a esquerda) para o vale propriamente dito, em direcção à casa dos meus passageiros de ocasião.
Pelo caminho dei com uma bela uma lulik que não resisti a fotografar ao mesmo tempo que o chefe de suco me convidava para a inauguração da sua própria uma lulik --- que iria começar a construir dentro de 2-3 meses... :-)
Estavamos quase a chegar a casa do chefe de suco quando ele me indicou o seu "kantor", a sede do suco.
Finalmente em casa! Muito agradecido, o chefe não quis deixar-me partir sem me oferecer um tais mane. Agradecido, disse-lhe que iria tentar saber alguma coisa do seu padrinho de baptismo, de que não sabia nada desde que partira de Timor, há mais de 45 anos!
E lá vim eu, de regresso a Dili, a cerca de 2 horas de distância apesar de estar a menos de 45kms da cidade.
No caminho, ainda no vale, deu para ver uns agricultores que preparavam a terra com um dos vários motocultivadores oferecidos pelo governo e o inevitável cemitério de beira de estrada...
Mais adiante, após mais uma curva da estrada, deparo com esta paisagem:
Chego finalmente à estrada Aileu-Dili e rumo a casa não sem antes pensar que se fosse noutras circunstâncias atrevia-me a ir a Aileu comer o melhor frango de caril do hemisfério sul... :-)
A viagem de regresso foi feita em 1h30m, com direito a paragem aqui e ali para tirar mais umas fotos, nomeadamente ao renovado conjunto de escolas no suco Madabeno e a uma das uma lulik mais fotografadas de Timor Leste, ao km 30 da estrada.
Por fim, já em Dare, deu para fotografar a placa que no local onde estavam as antigas placas do monumento ali existente oferecido pela Austrália, assinala as "deambulações" das placas originais --- sem referir verdadeiramente o conteúdo original destas...
Feito o telefonema, veio a notícia que temia: quem me atendeu era o irmão do dito Elisiário e informou-me que este tinha falecido há cerca de 4 anos. Mais, fiquei a saber que o nome do chefe de suco reproduzia, ipsis verbis, o nome de um terceiro irmão, também já falecido. Ao baptizar a criança de 13 anos o furriel português tinha homenageado o seu irmão!