sábado, 12 de março de 2011

Seloi Kraik

No exacto momento em que me preparava para escrever esta nota dei comigo a pensar: "noutra encarnação terei sido marinheiro? Ou caixeiro viajante? Ou almocreve? Porque é que tenho o bichinho do passeio?!..."
Seja qual for a resposta o certo é que no feriado passado --- que aqui foi na "quarta-feira de cinzas" --- meti o nariz no ar, prescrutei as montanhas em torno de Dili, constatei que havia poucas nuvens e decidi: "é hoje! É hoje que vou subir a montanha e ver como está o vale de Seloi Kraik nesta época de sementeira de arroz!"
A minha esperança era de que esta estivesse em curso, tal como lá para os lados de Baucau, Seiçal e Laga, e proporcionasse fotos bonitas, com o pessoal trabalhando nos campos e a água reflectindo o azul do céu! (além de marinheiro, caixeiro viajante ou almocreve devo ter sido poeta... :-) )

"Se bem o pensei melhor o fiz" e passado poucos minutos estava a começar a subir a ladeira para Lahane, às portas de Dili.
É nessal altura que vejo na borda da estrada um senhor que ao ver-me sózinho no carro me olha com os olhos de quem diz "dá-me boleia?". Por princípio não gosto de dar boleia porque se houver um azar fico metido numa alhada pois não há seguros... Mas não sei porquê --- terá sido o sorriso suave do senhor? Terá sido o ar cinquentão e calmo dele? --- parei e baixei o vidro do lado do passageiro. Ele perguntou imediatamente num português correcto para onde eu ía e respondi-lhe "Aileu! ou melhor Seloi Kraik!". A resposta, de todo inesperada, veio logo de seguida: "Eu sou o chefe de suco de Seloi Kraik! Pode dar-me boleia até lá?!...". A minha resposta também foi (quase) imediata --- foi só o nanosegundo necessário para pensar que tinha companhia falante de portuuês e um cicerone da primeira água: "Está bem! Entre!"

Entrou, acomodou-se, e identificou-se: "O meu nome é José Domingos Pica!" Achei piada ao nome e pensei logo que, com um nome daqueles, tinha andado por ali mãozinha de alentejano... O famoso Dr. Pica, o dux veteranorum mais famoso de Coimbra, não era de lá?!...


Perguntei a razão do nome e ele disse-me que tinha sido baptizado com 13 anos, em 1964, por um furrriel do exército português que prestava serviço em Aileu, um tal Elisiário Domingos Pica. Por isso ele se chama José Domingos Pica.

E conversando, lá fomos andando até que vimos duas motos paradas na beira da estrada e numa delas uma senhora na "garupa" com um bébe ao colo. Ele pediu para parar pois... era a mulher! Parámos e senti-me na obrigação de dizer se ela queria vir no carro. Convite aceite, seguimos viajem converando e maldizendo, aqui e ali, quem deixava as estradas chegarem a tal estado durante anos e anos... ;-)


Agora com mais passageiros, não dava para me distrair muito com a paisagem e tirar umas fotos... Mas lá fomos andando até chegarmos ao alto da montanha que rodeia Dili, quando se deixa de ver a cidade cá em baixo e se passa a ver o extenso vale onde está Aileu e que é "coroado" pela presença, ao longe, do Tatamailau, o ponto mais lato de Timor Leste, quase sempre coberto por nuvens.


Chegados cerca do Km 36 desviámos para a direita para apanhar a estrada que dá acesso ao vale de Seloi Kraik e que segue para Gleno. Passados uns 3-4 kms o vale abre-se à nossa frente quase por inteiro depois de mais uma das curvas da estrada --- desde Dili até ali devemos ter feito... perto de 1000! Não há zeros a mais, não!
Um pouco mais adiante está o meu "posto de observação" preferido e que tenho fotografado ao longo dos anos uma e outra vez: junto a uma árvore que surge fora da estrada, um pouco abaixo desta.



O vale surge aqui em todo o seu esplendor e extensão, com os arrozais em primeiro plano, a lagoa em segundo e, ao fundo, "presidindo", o Tatamailau --- encoberto, mais uma vez, pelas nuvens!
Primeira constatação: a sementeira já estava completa e não havia ninguém a plantar o arroz nem quadrados cheios de água esperando a sementeira e reflectindo o azul do céu... Paciência! Mas estava a meus pés aquela belezura toda, de um verde verde como só os arrozais conseguem ser!
Mais adiante saímos da estrada Aileu-Gleno e tomamos o desvio (para a esquerda) para o vale propriamente dito, em direcção à casa dos meus passageiros de ocasião.
Pelo caminho dei com uma bela uma lulik que não resisti a fotografar ao mesmo tempo que o chefe de suco me convidava para a inauguração da sua própria uma lulik --- que iria começar a construir dentro de 2-3 meses... :-)


Estavamos quase a chegar a casa do chefe de suco quando ele me indicou o seu "kantor", a sede do suco.


Finalmente em casa! Muito agradecido, o chefe não quis deixar-me partir sem me oferecer um tais mane. Agradecido, disse-lhe que iria tentar saber alguma coisa do seu padrinho de baptismo, de que não sabia nada desde que partira de Timor, há mais de 45 anos!

E lá vim eu, de regresso a Dili, a cerca de 2 horas de distância apesar de estar a menos de 45kms da cidade.

No caminho, ainda no vale, deu para ver uns agricultores que preparavam a terra com um dos vários motocultivadores oferecidos pelo governo e o inevitável cemitério de beira de estrada...



Mais adiante, após mais uma curva da estrada, deparo com esta paisagem:


Chego finalmente à estrada Aileu-Dili e rumo a casa não sem antes pensar que se fosse noutras circunstâncias atrevia-me a ir a Aileu comer o melhor frango de caril do hemisfério sul... :-)

A viagem de regresso foi feita em 1h30m, com direito a paragem aqui e ali para tirar mais umas fotos, nomeadamente ao renovado conjunto de escolas no suco Madabeno e a uma das uma lulik mais fotografadas de Timor Leste, ao km 30 da estrada.


Por fim, já em Dare, deu para fotografar a placa que no local onde estavam as antigas placas do monumento ali existente oferecido pela Austrália, assinala as "deambulações" das placas originais --- sem referir verdadeiramente o conteúdo original destas...


Promessa feita, promessa cumprida: no dia seguinte andei a "xeretar" as listas telefónicas e não dei com o nome do padrinho do meu passageiro. Mas dei com um nome muito parecido que pensei ser familiar próximo; talvez irmão ou filho.
Feito o telefonema, veio a notícia que temia: quem me atendeu era o irmão do dito Elisiário e informou-me que este tinha falecido há cerca de 4 anos. Mais, fiquei a saber que o nome do chefe de suco reproduzia, ipsis verbis, o nome de um terceiro irmão, também já falecido. Ao baptizar a criança de 13 anos o furriel português tinha homenageado o seu irmão!

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