Estamos algures em Setembro/Outubro de 2002. Alguns meses antes tinha sido publicado no Brasil o livro da jornalista Rosely Forganes (as melhoras, Rosely!) intitulado "Queimado, queimado, mas agora nosso!".
Sabendo disso pedi a uma aluna minha que estava no Rio que trouxesse o livro para Portugal, o que fez. Como entretanto fui para Timor Leste sem o receber, só em meados de Outubro chegou às minhas mãos através de um amigo que veio a Portugal e regressou a Dili pouco depois.
Recebido o livro na tarde de uma segunda-feira, nessa mesma noite estiquei-me em cima da cama do hotel onde estava (o então "D. Aleixo", hoje "Central") e fui lendo, fui lendo até que de repente (pg 66) dou com um diálogo dela com um personagem que parecia saído de um outro mundo. Indagado sobre se falava português ele respondeu "Claro, minha filha, eu sou português!". E ela continua : "Sem querer acabo de cruzar com um dos personagens mais incríveis e folclóricos do Timor: o Vovô Serra". Aí dei um pulo na cama e sentei-me para reler a fim de confirmar o nome dele. Lá estava escarrapachado: SERRA!
Aí fiquei com os sentidos todos atentos, o coração a palpitar mais acelerado e até li mais depressa o texto seguinte para ver se sabia mais sobre ele, uma pista sobre eventual ligação familiar.
Quando, mais à frente, ela diz que "Ele é natural do Fundão, na Beira Baixa, concelho de Castelo Branco" fiquei com um nó na garganta pois... o meu avô era do Fundão! Mais concretamente de Souto da Casa, a cerca de 5kms da sede do concelho. A hipótese de, inesperadamente e, mesmo algo inacreditavelmente, ir encontrar ali um parente, ainda que afastado, "esquecido do Império" quando a Indonésia invadiu Timor Leste, era algo que mexia comigo.
As horas daquela noite demoraram dias a passar... No dia seguinte, logo que cheguei ao emprego na manhã seguinte enviei uma mesnngem de e-mail à Rosely e pedi-lhe que me enviasse uma foto do "Vovô Serra". Jornalista e fotógrafa, ela teria certamente uma ou mais. O problema era agora sobreviver à angústia de esperar que ela abrisse o mail --- ainda por cima como uma diferença horária de 11 horas... ---e me respondesse.
Finalmente, ao fim do dia, chegou a resposta dela. E lá vinha a foto. Abri e... fiquei de boca aberta! E, aqui para nós que ninguém nos ouve, virei-me para um canto e deixei correr umas lágrimas: vários traços fisionómicos e o pormenor do "rabo de cavalo" de um cabelo todo branco tinham a "marca da casa": a do meu avô paterno, falecido aos 92 anos com uma farta cabeleira branca e... de "rabo de cavalo"! Aos 92 anos!... Talvez perguiça de ir ao barbeiro e de certeza uma certa dose de irreverência que está no nosso código genético.
Logo ali disse para mim mesmo que teria de conhecer pessoalmente o "Vô Serra" e o resto da semana foi passada com uma enorme impaciência até que chegou a manhã de sábado.
Meti-me no 4X4 com outros dois amigos --- um deles vai dar origem a outra "estória" de família, esta relacionada com o meu ramo materno --- e lá fomos a caminho de Maubara. Chegados à povoação, junto ao forte, indagámos pela casa do Vô Serra e lá nos explicaram que para lá chegarmos tinhamos de tomar a estrada que subia a montanha. Na verdade a estrada que no tempo da administração portuguesa dava acesso à Ribeira de Loes e, mais adiante, a Batugadé e à fronteira com o Timor indonésio. Lá fomos, tendo começado por atravessar a vau a ribeira de Maubara, quase permanentemente seca.
Vista da costa norte de Timor Leste na região de Maubara, no sentido Leste;
foto tirada na estrada para casa do "Vô Serra"
foto tirada na estrada para casa do "Vô Serra"
Depois de uns quantos quilómetros de curvas e contracurvas, algumas delas quase em 360º, chegámos a um conjunto de casas onde nos disseram que a casa do Vô já tinha ficado para trás. Não a tinhamos visto por ficar um pouco afastada da estrada.
Lá voltámos para trás e depois de percorrido o caminho de uns 100 metros que dá acesso à casa, apareceu o "velho Serra", com o seu cabelo branco apanhado atrás.
Identifiquei-me e disse-lhe da minha suspeita de que seriamos parentes pois o meu avô era da mesma zona dele.
Confirmada a origem comum, os nossos braços abriram-se para receber o outro num abraço de alguém que conhece o outro "desde sempre". Pelos vistos é mesmo verdade que "sangue é sangue"!...
Uma história mais pormenorizada do que foi a vida dele em Timor --- onde chegou há 43 anos!... --- fica para depois. Entretanto, na nossa conversa tive a oportunidade de saber que tinha chegado para se juntar ao irmão que já lá estava havia cerca de 20 anos, ido de Angola, onde prestava serviço militar. Foi integrado numa das primeiras companhias militares portuguesas que chegaram à então colónia após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 ou 1946, e também ele nunca mais saíu de Timor, estando enterrado no cemitério de Batugadé, onde faleceu em 1979 --- já depois, portanto, da invasão indonésia.
Aí tinha uma serração de madeiras --- de que hoje só resta o "esqueleto" --- e por isso era conhecido como " o Serra das madeiras" ou "o Serra de batugadé" (ainda que o apelido de família tenha, suspeito, que ver com a proximidade do Fundão às Serras da Estrela e da Gardunha).
Apanhado pela invasão indonésia em 1975, o Vô Serra decidiu ficar em Timor para tentar salvar as terras e o gado que então possuia na zona de Atabae e na Loes. E isto apesar de na altura da invasão estar planeando vender umas quantas cabeças para financiar a sua vinda a Portugal para vir buscar a mulher e o filho --- que ele deixara com 15 dias de idade!...
Quis a História que isso não tivesse sido possível e acabou, como a maior parte da população timorense, fugido no mato durante 3 anos, tentando escapar ao contacto com a tropa indonésia. Foi dessa época que lhe ficou o nome de "camarada Bere Buti" --- "camarada timorense branco" na língua da região. Entretanto, claro, as 400 cabeças de gado "foram-se"...
Em 1979, com a decisão da resistência timorense de mandar regressar as pessoas às povoações por, face às ofensivas do exército indonésio, ser impossível aos guerrilheiros continuar a assegurar a protecção da população e condições de produção de alimentos, ele próprio se integrou nesse movimento e abandonou a vida errante e difícil no mato, cheia de carências de toda a ordem.
Com a morte do irmão e face ao facto de os descendentes deste terem, na sua maioria, conseguido sair de Timor Leste, resolveu, para assegurar a propriedade dos terrenos, instalar-se na quinta da família no alto de Maubara onde ainda hoje vive e recebe, sempre com um sorriso e conversa fácil, quantos lá aparecem. E não são poucos!
Aí produz e vende café e... os melhores ananases do mundo!
Dr Ramos-Pinto, na sua visita ao campo de ananasesAnanás do "Vô" Serra descascado à moda timorense, em espiral
Um abraço, Vô!...
algures num ataque a uma virose informática desapareceu-me o seu endereço. Como pode imaginar esta história do Serra de Timor interessa-me (e mais do que a mim á minha Serra!). É espectacular por onde andamos perdidos nesta pequena Terra! É interessante acontecer-lhe a sí algo muito parecido com o que me aconteceu em Moçambique quando, ao telefone, uma voz me perguntou: Você é o Costa Deitado? Á afirmativa retorquiu: Pois é, daqui é o Costa Deitado! Acabava de descobrir aquele ramo familiar que pensava extinto mas que afinal já levava quatro gerações de moçambicanos...
ResponderEliminarAbraço
Zé Costa-Deitado (cdeitado@mail.telepac.pt)
Como este mundo é uma aldeia!!!!
ResponderEliminarJG